Relatório
de Pesquisa – Arquivo Judiciário
Observando as caixas referentes às
Comarcas da região do Cotinguiba na sala de pesquisa do organizado Arquivo
Público do Tribunal de Justiça de Sergipe. Pesquisando, respectivamente uma
caixa referente à Comarca da cidade de Maruim, deparo-me com um documento
interessantíssimo: um inventariado de bens à favor de uma escrava africana
liberta.
Dados do Inventário:
- Caixa 955
- Comarca – Maruim (2º
Ofício)
- Ano: 1889
- Inventariado:
Petronilha (escrava liberta)
- Inventariante:
Capitão-Mor Francisco Pinheiro Lobão
- O documento possui 108 páginas
Localizada
na região do Cotinguiba, o município de Maruim foi uma importante localidade
produtora de cana-de-açúcar em meados da segunda metade do século XIX. Nascera
da divisão do munícipio de Santo Amaro das Brotas, depois de um conflito
político envolvendo as famílias de Gaspar de Almeida Boto e Antônio José da
Silva Travassos, conhecido como a Guerra de Santo Amaro.
O ano do inventário analisado é 1889, ou seja, um ano
após a abolição da escravatura no Brasil (Lei Áurea) e meses antes da queda do
regime monárquico e a instituição do sistema republicano, sendo o militar Mal.
Deodoro da Fonseca seu proclamador e primeiro presidente da república.
Interessante notar também, com base nos estudos do escritor sergipano Orlando
Dantas, que:
“Liberto
os escravos africanos, não foi possível deter a crise que vinha com a ausência
de uma política de braço livre, apenas esboçada em São Paulo. Em Sergipe os
senhores-de-engenho, de economia modesta, sem recursos para suportar a mudança,
sofreram percalços, sobretudo na educação dos filhos, que era propósito
torna-los bacharéis, médicos, dentistas e farmacêuticos”.
Houve certo declínio econômico dos engenhos de
açúcar devido a esse fato, pois demoraria para os senhores assimilarem a nova
conjuntura surgida no país naquela época. A mão-de-obra escrava fora
substituída sistematicamente pela mão-de-obra livre, com a vinda de muitos
estrangeiros para trabalhem no Brasil, especialmente nas lavouras de café do
sudeste e sul brasileiro.
Adentrando na questão do inventário estudado por nós,
há um trecho que diz o seguinte: “Como
requer, e marco o dia 25 do mês corrente, às 11 horas da manhã na casa da
Câmara Municipal. Nomeio o inventariante o Capitão-Mor Francisco Pinheiro Lobão
em poder de quem se acham os bens contando da nota junto a prestar ao juramento
escrito, (...) por parte da fazenda Maroim. João Pereira de Magalhães Junior,
Curador Geral de Orfãos, vem perante V.Sª requerer a fim de se proceder
arrotamento nos bens deixados pela preta Petronilha, filha de Florência –
africana liberta, e como a finada tivesse morrido em tratamento, e estes bens
tivesse ficado em poder do Cap. Francisco Pinheiro Lobão, e tendo a finada
deixado uma herdeira menor de nome Maria da Hora, filha de Maria Pastora de
Jesús, requere portanto a V. Sª, a fim de mandar intimar o dito Lobão, para
apresentar um juízo todos os objetos descriptos na nota que vai junto a esta
petição”.
A questão é que com a morte da ex-escrava
Petronilha, na qual antes era detentora dos bens materiais cuja descrição será
mostrada mais a frente, este deixara uma sobrinha de nome Maria de Hora, esta
aos cuidados de dona Maria Pastora de Jesús, sendo esta a mãe da criança. A
Curadoria Geral de Orfãos¹ cuida do caso para averiguar o inventariado dos bens
deixados por Petronilha, que agora estava em mãos do seu antigo dono, o
Capitão-Mor Francisco Pinheiro Lobão.
_____________________________
¹Era uma instituição
que zelava pelos cuidados das crianças órfãos desde o período colonial
brasileiro. Era representado pelo Curador Geral de órfãos.
A seguir, vem a descrição dos bens deixados por
Petronilha: “Nota dos bens deixados pela
preta liberta Petronilha de que se faz menção na petição in front. A saber”...
Descrição dos
Bens Materiais deixados por Petronilha
|
|
Qtde
|
Objeto
|
Uma
|
Uma morada de casa na rua do Sal
|
Dois
|
Oratórios
com imagens
|
Um
|
(Não foi possível identificar)
|
Três
|
Cordões de ouro
|
Um
|
Colar de ouro
|
Dois
|
Pares de pulseiras de ouro
|
Dois
|
Pares de brincos
|
Dois
|
Pares de argolas
|
Duas
|
Redes de dormir
|
Um
|
Baú
|
Uma
|
Cama francesa grande
|
Uma
|
Cama pequena
|
Uma
|
Arca com roupa boa
|
Um
|
Bracelete de coral com detalhes
em ouro
|
-------
|
Diversos anéis de ouro
|
-------
|
Vasos, bacias, trastes de casa
e objetos de cozinha
|
Um
|
Crucifixo de ouro
|
Ao que mostra a descrição dos bens, percebemos que a
escrava liberta tinha uma grande quantidade de bens materiais, e muitos deles
feitos com metais preciosos. Detalhe importante é que ela tinha uma moradia (não
sabemos se era modesta ou sofisticada), e diversos itens religiosos, denotando
a crença na religião católica e nos santos por meio de suas imagens.
Segundo o Cap. Mor Francisco Pinheiro Lobão, Petronilha
faleceu em 10 de agosto de 1886, não deixara herdeiros, e portanto, não fazendo
um testamento.
Em outro trecho do inventário, encontramos contabilizados
os gastos referentes à conta de encomendações simples feitas para a preta
Petronilha Macieira, referente ao seu sepultamento, no dia 11 de Agosto de 1886:
Logo
abaixo, vem determinada a quantia a ser paga por Francisco Lobão pela sepultura
aberta no cemitério da cidade, avaliada em 2$000 de réis. Dado fé, pelo
cartório no dia 02 de março de 1889. Em seguida, vem a confirmação de que a
sepultura de Petronilha já fora paga no dia de seu enterro, em 11 de Agosto de
1886, isso confirmado pelo zelado do cemitério, no dia 26 de fevereiro de 1889.
Mais a frente, encontramos uma descrição
em que o Curador Geral de Órfãos, analisando o caso, afirma que a sobrinha da
finada Petronilha, Maria da Hora, é a descendente mais próxima daquela, sendo
assim, a única herdeira de fato dos bens deixado pela ex-escrava.
No final do inventário, O Dr. Felipe
Barbosa Santiago, tutor da menor Maria da Hora, sobrinha de Petronilha, afirma
que a menor tem recebido uma quantia de 74$000 réis do cofre da Curadoria de
Órfãos, na qual este valor pertencia a sua tutelada legítima, sua avó Florença
da Costa, mãe de Petronilha. E afirma que 50$000 réis foram usados nas despesas
com a menor. Informação lavrada na cidade de Maroim, no dia 14 de novembro de
1891.
Na penúltima folha do inventário,
aparece uma certidão do livro de caixa do cartório, que diz o seguinte: “A folha 31 do livro de Caixa debitado o
Colletor pela quantia de vinte quatro mil e oitenta e seis réis, recebido do
escrivão Lago, por ordem do Juiz de Órfãos, pertencente a órfão Maria da Hora,
da legítima de sua avó Florencia da Costa, havida do espólio de sua tia
Petronilha. Maroim, 30 de Dezembro de 1892”. Esta quantia foi o que sobrou
do desconto da quantia de 74$000 réis, visto que 50$000 réis foram usados para
pagar algumas despesas da referida menor.
É importante frisar que o estudo mais
aprofundado da história do Brasil do século XIX ainda nos reserva muitas
surpresas. Basta olhar este exemplo de inventariado analisado, onde encontramos
a personagem Petronilha, possuidora de caros bens, um fato pouco comum para uma
escrava liberta na época, e ainda mais, o desenrolar do processo de
transferência de bens para a sua herdeira mais próxima (sua sobrinha), e que
ainda tinha a questão de esta ser órfã. Ressaltando também, a interferência da
Curadoria Geral de Órfãos, cujo papel foi essencial na tramitação dessa
transferência de bens, acompanhando atentamente. É uma história muito
interessante a ser pesquisa, e que podemos encontrar várias outras histórias
como essa, no Arquivo Judiciário do TJ-SE, como também em outros arquivos no
estado e no Brasil afora.
Anexo: Algumas imagens do inventário
Fig. 01 – Folha inicial do Inventário, contendo o nome
do inventariado e do inventariante.
Fonte: Marcus Vinicius Gomes da Fonseca
Fig. 02 –
Descrição dos bens deixados por Petronilha
Fonte: Marcus Vinicius Gomes da Fonseca
Fig. 03 – Certidão de pagamento de quanti avaliada em
24$000 réis para a menor Maria da Hora.
Fonte: Marcus Vinicius
Gomes da Fonseca
Bibliografia
SEBRÃO. Sobrinho. Fragmentos da história de Sergipe.
Aracaju. Ed. Livraria Regina. 1972. p. 309.
DANTAS, Orlando. Vida Patriarcal de Sergipe. Rio de
Janeiro. Ed. Paz e Terra. 1980.
AMARAL, Sharyse Piroupo do. Escravidão, Liberdade e Resistência em Sergipe: Cotinguiba, 1860-1888.
Tese de Doutorado, UFBA, 2007.
--------------. O “campo negro” da cotinguiba
e a lei de 1871: ações e motivações dos quilombolas sergipanos. Revista Eletrônica do Arquivo Judiciário,
Ano 1, N. 1, Mar/Jun 2008.
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